Denúncias de condições análogas à escravidão não são atingem somente as zonas rurais ou grandes redes de varejo. Negócios de menor porte devem ser meticulosos na escolha de fornecedores
O IBGE divulgou recentemente uma constatação preocupante. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 1,5 milhões de brasileiros estão impedidos de deixar o emprego por causa de dívidas com o empregador.
A proporção representa cerca de 2,9% do total dos trabalhadores do setor privado e doméstico.
Essa prática é definida como trabalho análogo à escravidão, de acordo com a advogada Gabriella Valdambrini, da Gaia Silva Gaede Advogados.
“Qualquer prática de cerceamento do direito de ir e vir de um indivíduo pode ser caracterizada como escravidão contemporânea”, afirma Gabriella.
A mesma definição se aplica para empregadores que detêm documentos dos funcionários, mantêm uma jornada exaustiva ou ainda quando o trabalhador é exposto a situações degradantes no ambiente de trabalho.
Quem acredita que esses fatos acontecem apenas em locais afastados de grandes centros urbanos - ou que esses acontecimentos estão pouco relacionados ao comércio - está enganado.
A maior parte dos casos que aparecem na “Lista Suja” do trabalho escravo, do Ministério do Trabalho, foram realmente registrados nas zonas rurais.
Mas existe um número significativo de crimes acontecendo em oficinas de costura e nas obras da construção civil em grandes cidades, como São Paulo e Belo Horizonte.
Denúncias contra as grandes redes de varejo também não faltam.
Em outubro de 2016, a empresa M5, dona da marca M. Officer e uma das citadas na “Lista Suja”, foi condenada em primeira instância a pagar R$ 6 milhões por danos trabalhistas e dumping social, devido a condições análogas à escravidão em sua cadeia produtiva.
Além da condenação trabalhista, os empresários que submetem trabalhadores a essas situações podem ser enquadrados no artigo 149 do código penal, que tem como pena a reclusão de dois a oito anos, além de multa.
Em 2013, foi aprovada a Lei Paulista de Combate à Escravidão, que prevê que empresas condenadas por trabalho escravo em segunda estância não possam vender no Estado de São Paulo.
Nesses casos, o registro do imposto sobre circulação de mercadorias e serviço (ICMS) da empresa é suspendo por dez anos.
Além disso, os responsáveis pelo negócio não podem exercer atividade econômica similar durante o mesmo período.
A principal justificativa apresentada pelas grandes redes é quase sempre a mesma: as confecções terceirizadas submetem os trabalhadores a essa condições, e não a empresa em si. Mas, de acordo com a lei brasileira, toda a cadeia é responsável.
PEQUENOS E MÉDIOS
Não são apenas grandes empresas que figuram na “Lista Suja”. As de menor porte também foram citadas, como é o caso da Seiki, rede de lojas do Brás, na região central de São Paulo, que vende roupas tanto no atacado, quanto no varejo.
Em 2014, 17 bolivianos foram encontrados em condições análogas à escravidão numa confecção que fazia peças para empresa.
De acordo com Gabriella, os comerciantes, que vêm do interior para abastecer suas lojas no Brás e revendem as peças da marca, não podem ser responsabilizados pelo crime.
A exceção é se o lojista participar ativamente da cadeia produtiva. Ou seja,se ele fizer encomendas de peças de sua própria marca para a confecção.
Nesses casos, a empresa não pode alegar desconhecimento. É preciso, portanto, estar atento aos processos produtivos.
Para pequenas empresas que terceirizam a produção, uma das formas de se proteger de possíveis acusações é conhecer quem são seus fornecedores.
As grandes empresas costumam ter setores destinados a acompanhar de perto o trabalhado de fornecedores. Algumas realizam auditorias regulares, como é caso da varejista C&A.
Mas para empresas menores, é difícil manter um controle rígido, principalmente por causa dos custos envolvidos.
Uma das indicações de Alexandre Botelho, diretor da AML Consulting, empresa de serviços de prevenção à lavagem de dinheiro, é conhecer o histórico de cada fornecedor.
A AML Consulting é uma das empresas que oferece um banco de dados com os nomes de pessoas físicas e jurídicas que já foram ou ainda são relacionadas ao trabalho análogo à escravidão.
A lista da AML tem mais de três mil nomes, enquanto a “Lista Suja” atual do Ministério do Trabalho apenas 250.
"Diversas empresas prestam esse serviço de monitoramento e de banco de dados, algumas têm preços acessíveis para pequenos e médios empresários", afirma Botelho.
Na dúvida, é melhor não fazer negócios com fornecedores têm idoneidade duvidosa. A mancha na reputação da empresa e os problemas jurídicos envolvidos não valem o risco.
NOVAS FORMAS DE PRODUÇÃO
A marca de roupas e acessórios Flávia Aranha é uma das que se tornou um exemplo de preocupação com a cadeia produtiva.
A empresa, fundada pela estilista homônima em 2009, mostra que é possível conciliar sustentabilidade, responsabilidade na produção e negócios.
Após se formar em moda, Flávia Aranha trabalhou em empresas tradicionais do setor. Nesse período, observou o funcionamento das lógicas comerciais dentro da indústria têxtil brasileira.
Ela também chegou viajar para a Ásia para entrar em contato com novos fornecedores. Viu como eram as formas de produção em países que não tinham leis trabalhistas e ambientais rígidas.
Insatisfeita com as dinâmicas do setor, Flávia pensou em largar a profissão, mas decidiu pensar em novas lógicas de produção.
Ela tinha trabalhado anteriormente com técnicas artesanais durante a faculdade, e decidiu viajar pelo Brasil para buscar comunidades que produzissem de forma sustentável.
Ao criar sua marca própria, utilizando como fornecedores esse pequenos produtores, se envolveu com todas etapas da cadeia de produção.
Após diversas pesquisas relacionadas a tecidos e tingimento naturais, montou sua primeira coleção. Todas as peças levaram em consideração a sustentabilidade, tanto em relação à cadeia de produção, quanto em relação às causas ambientais.
Oito anos depois, suas criações continuam com as mesmas preocupações. Mas a produção aumentou.
“As pessoas começaram entender que consumir é um ato político. Ainda é uma minoria, mas é uma tendência para os próximos anos”, afirma Flávia.
A empresa no começo era formada apenas por Flávia e uma funcionária. Hoje, a marca tem uma loja própria na Vila Madalena, na zona Oeste de São Paulo,que vende peças para o exterior e emprega 15 pessoas, entre vendedoras e costureiras.
Uma das formas de conectar os consumidores com a cadeia de produção é utilizando um QR Code que está na etiqueta das peças.
Por essa tecnologia, os consumidores podem ter acesso a um vídeo que mostra como aquela coleção foi criada.
“Queremos trazer de volta a dimensão de como essas peças foram confeccionadas e mostrar quais são matérias-primas utilizadas e quem são as pessoas envolvidas com o processo”, afirma Flávia.
Conheça as formas de produção da estilista Flávia Aranha:
FOTO: Thinkstock e Daniel Malva/Divulgação
*As empresa M5 e Seiki foram procuradas. A Seiki não quis se pronunciar sobre o caso. A M5 não respondeu aos contatos.
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